Imagino se todos
guardam na memória o primeiro texto que escreveram na vida.
Aquela redação de
escola sobre as férias, uma narrativa sobre seu bichinho de estimação ou poucas
linhas em algum diário colorido sobre o primeiro amor com quem você dividiu o
lanche no recreio.
Meus primeiros textos
não foram escritos à mão. Foram datilografados em uma Olivetti Lettera 82
portátil de cor verde escura. Uma grande invenção do inicio dos anos 1980. Em
casa, a máquina de escrever não tinha muito uso. Eu a utilizava como “maletinha
de médico” antes de começar a ler. Pra mim, a engenhoca tornou-se uma verdadeira
diversão quando me dei conta de sua função real.
Eu nunca fui lá uma
criança dentro dos padrões comuns. Entre brincadeiras de boneca e jogos de
tabuleiro, eu preferia mesmo “catar milho” na Olivettinha e passei muitas
tardes escrevendo contos ou recriando estórias de filmes que assistia.
O tempo passou, a máquina
quebrou e infelizmente meus textos se perderam na memória. Até ontem à tarde...
Descendo a rua de casa,
após um cansativo dia de trabalho, lá estava ela! A pequena Olivetti verde 82,
empoeirada, mas inteirinha. Jogada em uma dessas caçambas de entulho em frente à
um sobrado. Não pude resistir.
Toquei a campainha:
“Boa tarde! A senhora jogou essa máquina de escrever na caçamba? Se não tiver
problema, posso pegar?”.
A mulher do sobrado
disse que havia acabado de colocar a peça vintage no lixo, junto a centenas de
outros “cacarecos” do ex-sogro. “Não sei se essa coisa aí funciona ainda, mas
se gosta, pode levar”, disse muito simpática, mas com tom de desdém pelo
objeto.
Eu não contive minha
felicidade ao tirar a tampa da máquina e constatar que não somente ela
funcionava como parecia recém-saída da fábrica e estava com a fita de tinta
preta e vermelha praticamente intocada. Tudo que precisei fazer foi passar um
bom pano para tirar o pó e pronto! Corri escada acima, peguei uma folha em
branco da impressora e comecei a datilografar para sentir se a belezinha
realmente funcionava. Não escutava aquele barulho peculiar das teclas batendo
seguido do sininho que indica final de parágrafo há anos. Logo percebi as
diferenças entre a digitação na Olivetti para o teclado do laptop. Em pouco
tempo minhas articulações começaram a ficar doloridas. A máquina é mais alta, desengonçada
pra quem desacostumou.
A verdade é que eu não trocaria
a modernidade do computador e todos os seus recursos em prol do retrô. Por mais
que goste de tudo que me remete esses objetos é impossível abrir mão da vida
eletrônica e cibernética na era do jornalismo em tempo real.
De qualquer forma,
bateu uma certa melancolia. Quase a mesma sensação que tenho quando vou a um
sebo e encontro jóias raríssimas da literatura às traças. Apesar de ser contra
o apego material, o descarte histórico devido à obsolescência me deixa
chateada. Imaginei quantas historias não foram escritas em maquinas como
aquela. Quantas cartas significantes foram redigidas em Olivettis portáteis ou
imponentes Underwoods que hoje perecem nos lixões da vida. Claro, o progresso
se faz necessário! Mas não será importante também manter o registro evolutivo a
fim de despertar e perpetuar a sensibilidade humana por meio da valorização do
que é antigo?
Não falo sobre peças
conservadas em museus. Não falo sobre o fútil toque vintage onde objetos
fabricados reproduzem antiguidades para decorar salas de estar que ostentam o
suposto bom gosto pequeno burguês.
Falo sobre aquele vaso
grotesco que foi da sua avó e que um dia foi usado para colocar as flores que
ela recebeu do primeiro namorado. Falo sobre a poltrona onde seu bisavô sentava
para ler contos de fadas para sua mãe. Falo sobre aquele radinho de pilha
esquecido no fundo de uma gaveta qualquer e que serviu para o seu avô escutar a
vitoria do time de futebol do coração enquanto esperava o bonde passar pra
voltar pra casa. Falo de uma boneca de pano surrada ou daquele cavalinho de
madeira que em um certo Natal foi o melhor presente que uma criança poderia
ganhar.
Quantos desses você tem
em casa? Quantos desses não estão empoeirados em uma caixa num quartinho, porão
ou sótão? Quantos desses não estão em uma caçamba, prestes a serem destruídos
assim como a (agora) minha Olivetti? Quantos desses você conhece a historia que
há por trás?
Minha Olivetti. De lixo à relíquia |