quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Relíquias pessoais - Qual o valor da sua história?

Imagino se todos guardam na memória o primeiro texto que escreveram na vida.
Aquela redação de escola sobre as férias, uma narrativa sobre seu bichinho de estimação ou poucas linhas em algum diário colorido sobre o primeiro amor com quem você dividiu o lanche no recreio.
Meus primeiros textos não foram escritos à mão. Foram datilografados em uma Olivetti Lettera 82 portátil de cor verde escura. Uma grande invenção do inicio dos anos 1980. Em casa, a máquina de escrever não tinha muito uso. Eu a utilizava como “maletinha de médico” antes de começar a ler. Pra mim, a engenhoca tornou-se uma verdadeira diversão quando me dei conta de sua função real.
Eu nunca fui lá uma criança dentro dos padrões comuns. Entre brincadeiras de boneca e jogos de tabuleiro, eu preferia mesmo “catar milho” na Olivettinha e passei muitas tardes escrevendo contos ou recriando estórias de filmes que assistia.
O tempo passou, a máquina quebrou e infelizmente meus textos se perderam na memória. Até ontem à tarde...
Descendo a rua de casa, após um cansativo dia de trabalho, lá estava ela! A pequena Olivetti verde 82, empoeirada, mas inteirinha. Jogada em uma dessas caçambas de entulho em frente à um sobrado. Não pude resistir.
Toquei a campainha: “Boa tarde! A senhora jogou essa máquina de escrever na caçamba? Se não tiver problema, posso pegar?”.
A mulher do sobrado disse que havia acabado de colocar a peça vintage no lixo, junto a centenas de outros “cacarecos” do ex-sogro. “Não sei se essa coisa aí funciona ainda, mas se gosta, pode levar”, disse muito simpática, mas com tom de desdém pelo objeto.
Eu não contive minha felicidade ao tirar a tampa da máquina e constatar que não somente ela funcionava como parecia recém-saída da fábrica e estava com a fita de tinta preta e vermelha praticamente intocada. Tudo que precisei fazer foi passar um bom pano para tirar o pó e pronto! Corri escada acima, peguei uma folha em branco da impressora e comecei a datilografar para sentir se a belezinha realmente funcionava. Não escutava aquele barulho peculiar das teclas batendo seguido do sininho que indica final de parágrafo há anos. Logo percebi as diferenças entre a digitação na Olivetti para o teclado do laptop. Em pouco tempo minhas articulações começaram a ficar doloridas. A máquina é mais alta, desengonçada pra quem desacostumou.
A verdade é que eu não trocaria a modernidade do computador e todos os seus recursos em prol do retrô. Por mais que goste de tudo que me remete esses objetos é impossível abrir mão da vida eletrônica e cibernética na era do jornalismo em tempo real.
De qualquer forma, bateu uma certa melancolia. Quase a mesma sensação que tenho quando vou a um sebo e encontro jóias raríssimas da literatura às traças. Apesar de ser contra o apego material, o descarte histórico devido à obsolescência me deixa chateada. Imaginei quantas historias não foram escritas em maquinas como aquela. Quantas cartas significantes foram redigidas em Olivettis portáteis ou imponentes Underwoods que hoje perecem nos lixões da vida. Claro, o progresso se faz necessário! Mas não será importante também manter o registro evolutivo a fim de despertar e perpetuar a sensibilidade humana por meio da valorização do que é antigo?
Não falo sobre peças conservadas em museus. Não falo sobre o fútil toque vintage onde objetos fabricados reproduzem antiguidades para decorar salas de estar que ostentam o suposto bom gosto pequeno burguês.
Falo sobre aquele vaso grotesco que foi da sua avó e que um dia foi usado para colocar as flores que ela recebeu do primeiro namorado. Falo sobre a poltrona onde seu bisavô sentava para ler contos de fadas para sua mãe. Falo sobre aquele radinho de pilha esquecido no fundo de uma gaveta qualquer e que serviu para o seu avô escutar a vitoria do time de futebol do coração enquanto esperava o bonde passar pra voltar pra casa. Falo de uma boneca de pano surrada ou daquele cavalinho de madeira que em um certo Natal foi o melhor presente que uma criança poderia ganhar.
Quantos desses você tem em casa? Quantos desses não estão empoeirados em uma caixa num quartinho, porão ou sótão? Quantos desses não estão em uma caçamba, prestes a serem destruídos assim como a (agora) minha Olivetti? Quantos desses você conhece a historia que há por trás?


 
Com influência da cultura pop em suas cores e design, versões mais antigas da
italiana Ollivetti Lettera hoje são expostas em lugares como o The Museum of
Modern Art (MoMA), em Nova York - Arquivo MoMa

Minha Olivetti. De lixo à relíquia  




Um comentário: